Lucas Luiz

Sagrado

Lucas Luiz

Publicado

há 2 anos

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Sagrado

Ser a poesia, por inúmeros aspectos, uma extensão da infância – creio eu – todos hão de concordar. A criança é capaz de sutilezas espontâneas que nenhum adulto, mesmo o melhor poeta, jamais poderia conceber. O nível de observação para com as miudezas da rotina torna a vida sempre um espetáculo estimulante, mesmo onde nada acontece em aparência.

A Guararema do final dos anos 90 tinha um charme todo especial. Pelo menos, aos meus olhos deslumbrados de infância. Diferente em muito do município turístico dos dias de hoje, esse ponto de respiro para transeuntes de localidades maiores; cuja pressa se mostra sempre um traço característico e contrastante para com as nossas ruas, vias de uma pacacidade que chega a enervar. Era diferente e não faço aqui qualquer juízo de valor, apenas atesto algo factual.

Os eventos aos quais eu frequentava, em geral as festividades da paróquia de São Benedito, dentro do pátio do salão paroquial, permitam-me um espaço seguro para praticar o exercício de ser criança na essência: o pega-pega trombando em pessoas desconhecidas. À época da Guararema em paralelepípedo, aquele “estacionamento do padre” nutria (em parte) a vida social da cidade com suas quermesses (leia-se Festa do Divino).

Aos oito anos de idade nenhum dos grandes questionamentos humanos tem importância. Se se pode correr e testemunhar tombos alheios, tudo está em paz. Embora fosse perceptível certa tensão com a proximidade da big data. A virada do milênio é a atarracada a ela, o armagedon. Por isso o riso deveria ser sagrado. Era inconcebível, para minha cabeça, adultos esbanjando-os nas ocasiões mais frívolas – em pequenas rodas de amigos por barracas de bolinho caipira ou pastéis onde ninguém estava a cair. Gargalhadas proferidas sem quedas no raio de visão são meros desperdícios. Uma criança sabe disso. Há ligação intrínseca entre os músculos se esborrachando no chão e a boca fazendo o movimento de orelha a orelha. Senti-me Prometeu provedor do fogo: pessoas grandes desconheciam a premissa mais básica sobre existir. Observava-os em caráter de julgamento procurando míseros sinais de lucidez. E nada. Sob as caudas das frases aleatórias surgiam eles, os sorrisos, sempre deslocados. Nada de trombadas, tropeções. Todos a ostentar equilíbrio.

Mal podia supor ser essa instabilidade um atributo da personalidade adulta, foi preciso abandonar a ingenuidade por completo para percebê-la; e então, começar a compreender o humor inadequado e involuntário do qual, cedo ou tarde, nós terminamos por fazer parte.

As coisas mudaram muito, bem verdade, tornei-me adulto cauteloso, rindo de coisas aleatórias, e, temerário com os tombos. Guararema também mudou, conheceu o asfalto, cresceu e as festividades precisaram ser realocadas; tal qual o meu próprio núcleo de consciência. Mas o riso continua sendo sagrado, disso trago convicção; embora tantas vezes as piadas de mau gosto me tiraram risinhos. Sei ser necessário treiná-lo ao ponto de lembrar a infância, onde a espontaneidade desferida é capaz – feito a poesia – de acalantar.

Iniciou com crônicas no Jornal D'Guararema. Recentemente colaborou com inúmeras Revistas Literárias de prestígio, entre elas: A Bacana, Philos, Ruído Manifesto, Subversa e Mallarmargens. Dá pitacos sobre literatura e artes no blog https://poeminhoscult.wordpress.com/ e no https://medium.com/@luscaluiz-46957 . Além de alimentar com poesia o instagram @lucasluiz_ .